M&E entrevista Márcio Lopes de Freitas, presidente do Sistema OCB
“O futuro será cada vez mais cooperativo. E o Brasil, com sua diversidade, capacidade produtiva e força humana, tem tudo para ser um protagonista global desse movimento”. Essa é a certeza de Márcio Lopes de Freitas quando o assunto é o papel do cooperativismo na sociedade. Para ele, o cooperativismo “é uma das respostas mais modernas e eficazes aos desafios do nosso tempo: desigualdade, concentração de renda, exclusão financeira, insegurança alimentar e degradação ambiental.”
Nesta entrevista exclusiva para a Máquinas & Equipamentos, Freitas discorre sobre a doutrina cooperativista, a evolução e os números do movimento em território nacional, o peso do Ramo Agro no cenário brasileiro e seu vínculo com o Ramo Crédito, assim como a legislação que regula a atividade.
Boa leitura!
O Sistema OCB
O Sistema OCB é dividido em três casas, cada uma com sua função específica e todas sempre trabalhando juntas pelo cooperativismo.
Confederação Nacional das Cooperativas (CNCoop)
Entidade sindical de grau máximo das cooperativas, que objetiva defender os interesses da categoria, promovendo a integração entre as federações e os sindicatos de cooperativas. Uma atuação que acontece em diversas esferas, sempre em busca de avanços que fortaleçam o cooperativismo.
Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)
Tem a função de promover o cooperativismo junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e representar o movimento dentro e fora do País. A OCB trabalha mostrando todos os benefícios que o cooperativismo é capaz de trazer para as pessoas, para a economia e para o planeta.
Serviço Nacional de Aprendizagem
do Cooperativismo (Seescoop)
É o braço de formação das cooperativas. Para isso, formula e oferece cursos de capacitação, com foco na formação profissional, educação cooperativista, gestão e liderança cooperativa, entre outros.
Máquinas & Equipamentos – Quais os principais aspectos da doutrina cooperativista?
Márcio Lopes de Freitas – A doutrina cooperativista se fundamenta em valores sólidos e princípios universais que orientam as atividades do modelo de negócios. Entre os valores centrais estão a autoajuda, a responsabilidade, a democracia, a igualdade, a equidade e a solidariedade. Esses fundamentos se materializam em sete princípios: adesão voluntária e livre, gestão democrática pelos membros, participação econômica dos cooperados, autonomia e independência, educação e formação continuada, intercooperação e interesse pela comunidade.
Mais do que diretrizes operacionais, esses princípios refletem uma filosofia de vida: a de que é possível gerar prosperidade com justiça social, colocando as pessoas no centro das decisões. Esse modelo, que combina eficiência econômica e compromisso com o bem comum, tem se mostrado extremamente eficaz em diversos setores, promovendo desenvolvimento sustentável, inclusão e cidadania.
M&E – Como está evoluindo o cooperativismo no Brasil?
Freitas – O cooperativismo brasileiro vem apresentando uma trajetória consistente de crescimento e amadurecimento. Há uma clara profissionalização da gestão, ampliação da base de cooperados e diversificação das áreas de atuação. Além disso, as cooperativas vêm incorporando inovações tecnológicas, adotando práticas ESG e ampliando sua presença nos mercados interno e externo.
Nos últimos anos, temos visto uma evolução especialmente significativa no cooperativismo de crédito, agropecuário e saúde, que ampliaram suas estruturas, ofereceram novos produtos e serviços e conquistaram espaço relevante junto à população. O Sistema OCB tem atuado fortemente para apoiar essa expansão, com programas de capacitação, melhoria da governança, representação institucional e estímulo à intercooperação.
Quais os números do cooperativismo no Brasil?
Freitas – Atualmente, o Brasil conta com cerca de 4,7 mil cooperativas registradas no Sistema OCB, que reúnem mais de 23 milhões de cooperados — o que representa praticamente 10% da população brasileira. Essas cooperativas geram mais de 500 mil empregos diretos e, em 2023, movimentaram mais de R$ 600 bilhões.
O impacto do cooperativismo, no entanto, vai além dos números: em muitas regiões do País, principalmente no interior, as cooperativas são a principal — e muitas vezes a única — alternativa de acesso a crédito, comercialização de produtos, assistência técnica, saúde de qualidade e geração de renda.
M&E – Qual o peso do Ramo Agro na produção agropecuária brasileira? E na balança comercial do País?
Freitas – O ramo agropecuário do cooperativismo é um dos motores da produção de alimentos e da economia brasileira. As cooperativas agropecuárias respondem por mais de 50% da produção nacional de grãos, além de registrar representativas safras na fruticultura, horticultura, produção animal e setor sucroenergético. Para se ter uma dimensão desta importância, é importante citar que são originadas, por meio de uma cooperativa e de seus produtores rurais cooperados, cerca de 75% da produção de trigo, 55% do café, 53% do milho, 52% da soja, 50% dos suínos, 48% do algodão, 46% do leite e 43% do feijão. Diante desta representatividade, sem dúvida, o cooperativismo agropecuário está presente e contribui de maneira significativa na geração de divisas e nos resultados positivos da balança comercial do País nos últimos anos, seja de forma direta ou indireta. Para exemplificar, as cooperativas agropecuárias acessam os mercados internacionais de forma direta quando fornecem seus produtos sem intermediários nas comercializações internacionais. Por outro lado, e de maneira mais usual, esses negócios coletivos também estão presentes nos mercados internacionais através dos produtos que comercializam internamente com terceiros que os direcionam para exportação.
M&E – O Ramo Agro tem apoio direto do Ramo Crédito. Como essa relação vem evoluindo e quanto da produção brasileira é financiada pelas cooperativas de crédito?
Freitas – Essa relação é cada vez mais estruturada e sinérgica. O produtor rural que é cooperado no agro muitas vezes também é cooperado no crédito. Isso permite que ele tenha acesso a financiamento adequado, taxas mais justas e atendimento personalizado.
As cooperativas de crédito conhecem a realidade dos produtores, o ciclo produtivo, as sazonalidades e os riscos envolvidos. Isso resulta em uma concessão de crédito mais assertiva e segura. Estima-se que mais de 20% de todo o crédito rural concedido hoje no Brasil é feito pelas cooperativas de crédito.
Essa capilaridade, somada à confiança entre cooperativas, fortalece o sistema como um todo e contribui para a permanência do produtor no campo, com dignidade e produtividade. Em meio a este posicionamento como fortes demandantes de capital para sua atividade econômica, esses negócios coletivos e seus associados têm no cooperativismo de crédito importantes aliados e parceiros nessas relações comerciais. Para se ter uma ideia, durante o exercício 2023, segundo dados do Anuário do Cooperativismo Brasileiro, cerca de 52% das cooperativas agropecuárias fizeram negócios com cooperativas de crédito.
Esse alto nível de interação entre cooperativas de ramos diferentes, apresenta-se sinérgico desde o início da história do movimento, pois normalmente, mas não em regra, ambos possuem donos, seus cooperados, comuns aos quadros sociais das suas cooperativas agropecuárias, que apoiam seus cooperados em insumos, produção, armazenagem, agroindustrialização e comercialização, e das cooperativas de crédito, que ofertam ao público produtos financeiros demandando para sua atividade econômica e vida pessoal.
M&E – Como é o relacionamento do cooperativismo de crédito com as instituições financeiras tradicionais? O que elas têm em comum?
Freitas – As cooperativas de crédito convivem de forma respeitosa com o sistema financeiro tradicional. Compartilhamos princípios de governança, boas práticas de gestão, uso intensivo de tecnologia e compromisso com a estabilidade do sistema.
No entanto, a principal diferença está no propósito. Enquanto os bancos visam maximizar os lucros para os acionistas, as cooperativas de crédito operam com foco no cooperado, que é ao mesmo tempo cliente e dono. O resultado das operações é reinvestido na própria cooperativa ou retorna aos cooperados, fortalecendo o ciclo econômico local. Essa lógica torna as cooperativas de crédito mais próximas das pessoas, especialmente em regiões onde os grandes bancos não chegam.
Márcio Lopes de Freitas
Graduado em Administração pela Universidade de Brasília, Márcio Lopes de Freitas é agropecuarista e cooperativista de berço, e há mais de 30 anos contribui efetivamente com o movimento cooperativo nacional.
Nascido no fim dos anos 1950, em Patrocínio Paulista (SP), região em que sua família cultiva café e olerícolas orgânicas, além de criar gado, Freitas iniciou sua vida cooperativista ainda jovem, em 1994, nas Diretorias da Cooperativa de Cafeicultores e Agropecuaristas (Cocapec) e da Cooperativa de Crédito Rural (Credicocapec), inclusive atuando como presidente. A partir daí, mais especificamente entre 1997 e 2001, esteve à frente da Organização das Cooperativas do Estado de São Paulo (Ocesp).
Sua chegada à Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e ao Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) aconteceu em 2001 e se mantém ainda hoje. A essa atividade, em 2005, foi acrescida à presidência da Confederação Nacional das Cooperativas (CNCoop) e, em 2008, à vice-presidente da Américas da Internacional Co-operative Agricultural Organisation (ICAO), organização setorial da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), instituição da qual participa como membro do Conselho de Administração desde julho de 2022.
Todas essas funções se somam e comprovam a dedicação de Freitas ao cooperativismo.
M&E – Como a legislação brasileira vem evoluindo no tocante ao cooperativismo? Dê exemplos.
Freitas – Tivemos importantes avanços legislativos nos últimos anos. Um marco significativo foi a aprovação da Lei Complementar 196/2022, que modernizou e trouxe mais segurança jurídica ao Sistema Nacional de Crédito Cooperativo (SNCC). Essa lei fortaleceu a atuação das centrais e confederações de crédito, ampliou a possibilidade de intercooperação e ajustou dispositivos para aumentar a eficiência e solidez do setor.
Também temos acompanhado de perto os desdobramentos da Reforma Tributária. O cooperativismo é um modelo específico e não pode ser tratado da mesma forma que empresas com fins lucrativos. Assim, nossa atuação foi intensa para garantir que os princípios do ato cooperativo fossem preservados na nova legislação aprovada no final de 2024. Felizmente, conseguimos avançar com o reconhecimento da não incidência de tributos sobre atos cooperativos — um entendimento essencial para a viabilidade do modelo, que não gera lucro, mas distribui resultados proporcionalmente à participação dos cooperados.
Outro avanço recente e fundamental foi a aprovação da Lei Complementar 213/2025, que ampliou a participação das cooperativas no mercado de seguros. Essa legislação permitiu que cooperativas de diferentes ramos pudessem estruturar seguradoras cooperativas com maior flexibilidade, proporcionando mais competitividade ao setor e garantindo que os cooperados tenham acesso a produtos mais adequados às suas necessidades. Com isso, o mercado de seguros cooperativos ganha força e se torna uma alternativa mais acessível para produtores rurais, profissionais autônomos e pequenos empresários, fortalecendo ainda mais a segurança financeira dentro do ecossistema cooperativista.
M&E – O cooperativismo no Brasil ainda pode crescer muito, em vários setores da economia. Quais as perspectivas e o que é feito nesse sentido?
Freitas – O potencial de expansão do cooperativismo no Brasil é imenso. Além de consolidar sua atuação nos Ramos Agro e Crédito, há espaço para um crescimento exponencial nos ramos Saúde, Infraestrutura, Consumo, Trabalho, Transporte, Habitação e Turismo. Tanto que temos como meta alcançar 30 milhões de cooperados e R$ 1 trilhão em movimentação financeira até 2027.
O Sistema OCB também tem trabalhado muito na promoção do empreendedorismo cooperativo, no apoio a startups cooperativas, na inovação digital, e na formação de lideranças jovens para garantir a sustentabilidade do movimento. Além disso, temos uma atuação muito forte em advocacy, garantindo que o ambiente legal e regulatório favoreça o surgimento e a consolidação de novas cooperativas.
Investimos ainda em pesquisas de imagem e comunicação estratégica, por meio do movimento SomosCoop, para aumentar o conhecimento da população sobre o cooperativismo e estimular o engajamento de novos públicos.
M&E – Como é possível definir o papel do cooperativismo para a sociedade?
Freitas – O cooperativismo é uma das respostas mais modernas e eficazes aos desafios do nosso tempo: desigualdade, concentração de renda, exclusão financeira, insegurança alimentar e degradação ambiental.
Com base em valores sólidos e práticas inovadoras, o modelo cooperativista mostra que é possível produzir, distribuir e gerar riqueza de forma equilibrada e inclusiva. Por isso, acreditamos que o futuro será cada vez mais cooperativo. E o Brasil, com sua diversidade, capacidade produtiva e força humana, tem tudo para ser um protagonista global desse movimento. Tanto é assim que a ONU declarou 2025 como o Ano Internacional das Cooperativas.