Compromisso prioritário

PNRS foi instituída em 2010 e até agora não revelou os benefícios esperados pela sociedade brasileira

Quando o tema a ser discutido é ‘lixo’, ou, de forma mais contemporânea, ‘Resíduos Sólidos Urbanos’, um turbilhão de dúvidas e desconfianças emerge à tona. E não é sem motivo. Na base desse estado generalizado de angústia e paralisia, uma observação salta de imediato à frente de qualquer questionamento perenizando um círculo vicioso de lastimáveis resultados – que tipo de relação mantemos com o lixo que produzimos, seja em nível residencial, industrial, ou outro qualquer? Por mais incômoda, ou ‘distante’, que seja a realidade, não há dúvidas de que a maneira como tratamos o lixo, independente da atividade e condição que origina o rejeito, tem reflexos diretos e indiscutíveis no equilíbrio e qualidade do meio ambiente que nos cerca e, consequentemente, no bem-estar geral da comunidade à qual o cidadão esteja vinculado.

Mantemos, quase sempre, um prudente e quase ‘cultural’ distanciamento do tema a partir do momento que concretizamos a nobre tarefa de desfazermos dos dejetos produzidos. Ou seja, o ‘lixo’ parece deixar de ser uma responsabilidade do indivíduo a partir do momento em que esse mesmo cidadão descarta (de forma adequada, ou não) suas sobras. É como se existisse um senso coletivo de que a partir da desprezível ‘lata de lixo’ residencial, industrial, ou outra qualquer, a realidade que envolve os cuidados, transporte, destinação e/ou manejo final dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) passa a ser responsabilidade única e exclusiva dos poderes públicos.

A verdade dos fatos, porém, é bem diferente do comportamento desinteressado que frequentemente apresentamos em relação ao lixo que produzimos. Na realidade, toda a sociedade civil organizada, incluindo os poderes públicos e privados e as comunidades em geral, são responsáveis diretos pelo lixo que geram. Existe, desde 2010, legislação brasileira que esclarece em seu terceiro artigo, alínea IX, quem são os geradores de RSU – “pessoas físicas, ou jurídicas, de direito público, ou privado, que geram resíduos sólidos por meio de suas atividades, incluído o consumo”. Essa lei, de nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, vigente, instituiu o arcabouço da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) à qual estamos todos submetidos, independente do fato de sermos cidadãos, empresas, indústrias, hospitais, escolas, igrejas, prefeituras, ONGs…

Princípios e objetivos

A simples aprovação da lei 12.305/2010 (regulamentada pelo Decreto nº 7.404, de 23 de dezembro de 2010) já representou gigantesco passo dado em direção à gestão dos RSU de forma ambientalmente adequadas. Mas, não foi o suficiente. Depois de mais de vinte anos de longas e acaloradas discussões no Congresso Nacional, o País, finalmente, passava a contar, em 2010, com uma política nacional sobre os resíduos sólidos, também considerada pelos especialistas como o ‘marco regulatório’ do setor. Bastante complexa e bem elaborada, a lei que institui a PNRS dispõe em seu primeiro artigo sobre “os princípios, objetivos e instrumentos, bem como as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluídos os perigosos, e chegando às responsabilidades dos geradores e do poder público e aos instrumentos econômicos aplicáveis”. E, em seu artigo quarto estabelece a abrangência de metas, envolvidos e responsabilidades: “A Política Nacional de Resíduos Sólidos reúne o conjunto de princípios, objetivos, instrumentos, diretrizes, metas e ações adotados pelo Governo Federal, isoladamente, ou em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal, Municípios, ou particulares, com vistas à gestão integrada e ao gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos”.

Em síntese, embora não pareça, uma vez que não foi suficientemente disseminada perante a população, é responsabilidade da sociedade, em suas várias camadas constituintes, gerir adequadamente os resíduos produzidos sob o peso de lei acordada em plenário do Congresso Nacional. Entre os esforços preconizados pela PNRS encontravam-se ações importantes para serem realizadas pelos vários agentes inclusos na nova política de resíduos sólidos – ‘instalação de aterros sanitários em substituição a lixões e aterros controlados’, ‘coleta seletiva’, ‘elaboração de planos de gestão de RSU em níveis municipal, regional e estadual’, entre outros. Essas ações preconizavam uma revolução eficaz em relação à completa cadeia dos rejeitos produzidos pelas inúmeras atividades humanas.

Grande parte das decisões contidas na Lei 12.305/2010, que instituiu o PNRS, não saíram do papel. A começar pela instalação de aterros sanitários no lugar de ‘lixões’, ou ‘aterros controlados’, pelos 5.570 municípios brasileiros até o prazo máximo (no momento da sanção presidencial) de 2 de agosto de 2014. Pior, a situação não se alterou muito, mesmo passados quase oito anos de promulgação da lei. A disposição final inadequada dos RSU para ‘lixões’ e ‘aterros controlados’ continuou sendo realizada por parte significativa dos municípios brasileiros. De acordo com o relatório ‘Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil – 2016’, ano base 2015, de responsabilidade da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), “os índices de disposição final de RSU apresentaram retrocesso no encaminhamento ambientalmente adequado”. As unidades inadequadas, como ‘lixões’ e ‘aterros controlados’, ainda estão presentes em todas as regiões do País “e continuam recebendo mais de 80 mil toneladas de resíduos por dia, com elevado potencial de poluição ambiental e impactos negativos na saúde”, segundo conclui o relatório.

Aterros sanitários X lixões

Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.244 dispõem de aterros sanitários em atendimento à PNRS; 1.774 operam aterros controlados (ou seja, áreas para descarte com insuficientes camadas superiores protetivas); e 1.552 lançam seus dejetos em lixões (locais a céu aberto, sem camadas superiores protetivas), informa a Abrelpe em seu Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil – 2016. Em outras palavras: 3.326 municípios brasileiros, ou 60% do total nacional, ainda lançam seus RSU em locais impróprios e inadequados, em desacordo com o que preconiza a PNRS e, portanto, passíveis de ocasionarem contaminação ambiental.

As informações disponibilizadas pela Abrelpe, entidade civil sem fins lucrativos, que congrega as empresas que atuam nos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e representante, no País, da International Solid Waste Association (ISWA), a principal entidade mundial dedicada às questões relacionadas aos resíduos sólidos, através do ‘Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil – 2016’, são as mais recentes que existem. Do lado do poder público, os dados mais atuais disponíveis sobre Resíduos Sólidos Urbanos são os do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, cobrindo o ano de 2015. As informações relativas ao exercício de 2016 ainda não foram tabuladas (em junho do presente exercício foi encerrado o prazo para remessa, por parte dos municípios, dos dados atualizados para confecção das planilhas). A publicação oficial do levantamento pelo SNIS está prevista somente para o final de janeiro de 2018, se não houver adiamento.

Paulo Da Pieve, coordenador do Grupo de Trabalho de Máquinas e Equipamentos para Resíduos Sólidos (GT-RS), da ABIMAQ, comenta que “os números totalizadores que indicam quantos municípios brasileiros ainda operam ‘lixões’ e outros locais menos adequados para descarte dos resíduos urbanos são muito inseguros pelas mais variadas razões”. Mas, reconhece que “muitos municípios brasileiros deixaram de cumprir o disposto no PNRS dentro do prazo estabelecido de quatro anos” a partir da promulgação da Lei 12.305/2010. Para ele, os motivos do descumprimento variam desde a ausência de recursos em caixa, ao não acesso a linhas de financiamento colocadas à disposição das prefeituras, passando pela falta de pessoal técnico e qualificado, nas administrações públicas municipais, para consolidação daquilo que preconizava a PNRS.

Vontade política

Na verdade, a PNRS, apesar de lúcida e bem estruturada, acabou gerando alguns exageros que, involuntariamente, resultaram no não atingimento de vários benefícios projetados a partir da sua consolidação pelas comunidades. “O marco regulatório (ou, a PNRS) foi um avanço, mas, não resolveu todo o problema da gestão dos resíduos sólidos urbanos no País”, opina Paulo Da Pieve. “É certo que faltou vontade política, faltou recursos para os municípios investirem, faltou conhecimento da própria população sobre a legislação, dificultando seriamente sua consolidação nos prazos previstos”, afirma o coordenador do GT-RS da ABIMAQ. Entretanto, “é bem provável também que alguns exageros e exigências mais radicais inseridas na PNRS acabaram por distanciar sua plena consolidação em território nacional”, raciocina o executivo.

“Veja, por exemplo, a questão da coleta seletiva”, esclarece Paulo Da Pieve. “Uma coleta seletiva, realizada dentro dos parâmetros preconizados pelo PNRS, custa sete vezes mais caro que a coleta de lixo convencional”, afirma ele. Então, “será que não valeria mais a pena coletar tudo, 100% do que fora gerado, e só depois promover a triagem dos materiais recicláveis em locais definidos, ao invés de exigir a separação cuidadosa por parte da sociedade?”, questiona. E completa que existem exemplos internacionais que o Brasil poderia adotar sem problema algum. “No Canadá só existe a separação dos lixos ‘secos’ e ‘úmidos’”, afirma Da Pieve. “Lá, a separação exigida dos cidadãos é somente essa e os lixeiros têm autoridade suficiente para aplicar multas, ou até mesmo não recolher o lixo, se acharem que não está corretamente separado”. Além de mais prática, tem a capacidade de engajar mais facilmente a sociedade no projeto de separação seletiva dos dejetos produzidos, especialmente os residenciais.

Outra questão bastante relevante no Brasil envolvendo a PNRS e muito próxima da coleta seletiva diz respeito às cadeias produtivas a partir das matérias primas recicladas. Em muitos casos, “o material reciclado, como o papel, por exemplo, custa muito mais caro ao consumidor final que o material original, por força de tributações questionáveis”, comenta Paulo Da Pieve. Por mais que “diga-se que a ‘reciclagem’ seja um modelo de negócio viável, além de social e ambientalmente corretos, enquanto não tivermos uma política de preços que favoreça essa atividade produtiva, o aproveitamento de certas matérias primas secundárias não irá para frente no Brasil”, acredita o coordenador do GT-RS.

Para ele, “toda matéria prima secundária precisaria ser subsidiada pelo governo”. No exterior, onde existem sistemas mais avançados de gestão de resíduos sólidos, “as matérias primas secundárias contam com subsídio dos governos locais”, afirma ele. “Na Europa, o ‘negócio’ com as matérias primas recicladas só deu certo porque existe um fundo europeu bilionário para bancar essa atividade”, acrescenta. No Brasil, caso seja do interesse comum que esse modelo de negócio prospere, “haveria a necessidade de duas ‘evoluções’ importantes – a primeira, subsídios por parte das esferas governamentais; segunda, ajuste tributário capaz de transformar essa indústria em atividade atrativa do ponto de vista comercial”, enfatiza Paulo Da Pieve.

Cumprimento da lei

Na ABIMAQ, “criamos o grupo de trabalho de resíduos sólidos para mobilizar a indústria nacional face ao mercado que ‘deveria’ ser alavancado com a PNRS”, lembra o coordenador da entidade. Mas, “isso não aconteceu, basicamente porque o Ministério Público brasileiro não exigiu o cumprimento da lei 12.305, que dispunha, por exemplo, sobre a instalação de aterros sanitários dentro de prazos previstos”. Hoje, para ter-se uma ideia da dimensão desse mercado, basta levar em conta as estimativas apresentadas pela Abrelpe em seu Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil – 2016 (ano base 2015). No relatório anual a associação aponta que “os recursos aplicados pelos municípios, em 2016, para fazer frente a todos os serviços de limpeza urbana no Brasil foram, em média, de R$ 9,92 mensais por habitante, o que representa queda de 0,7% em relação a 2015”. Na mesma publicação sabe-se que o mercado de limpeza urbana no País seguiu tendência de recessão econômica movimentando R$ 27,3 bi, isto é, queda de 0,6% em comparação a 2015. No período, a geração de empregos diretos também apresentou queda de 5,7% em relação ao ano anterior e perdeu cerca de 17.700 postos formais de trabalho no setor.

“Como não houve evolução das atividades industriais fornecedoras de máquinas e equipamentos para o setor nacional de limpeza pública, passamos a direcionar nosso trabalho em outra direção”, adianta o coordenador do GT-RS, da ABIMAQ. Agora, diz ele, “estamos trabalhando para que entidades representativas de setores industriais, como a ABIMAQ, questionem a postura dos entes públicos da federação, ao menos para que ocorra, de fato, a efetivação completa da Lei 12.305/2010”. Nesse sentido, “definimos, junto ao GT, uma política de atuação baseada em sete pontos fundamentais que, uma vez equacionados, promoveriam o destravamento das atividades industriais junto a setor de limpeza urbana”, informa o executivo.

São eles: 1 – equacionar as dificuldades e exageros oriundos dos preços das matérias primas secundárias, incluindo a bitributação que inviabiliza o novo modelo de negócio (social e ambientalmente corretos); 2 – exigir presença mais efetiva do Ministério Público junto às três esferas de governo cobrando a efetividade da PNRS, ou lei 12.305/2010; 3 – solucionar a ausência de recursos em todas as esferas do poder público para implementação da PNRS; 4 –tratar a questão dos resíduos sólidos como de Saúde Pública; 5 – alterar o modelo de negócio implantado para pagamento das empresas ligadas aos serviços de limpeza urbana; 6 – considerar os ‘catadores’ como parte do processo global e não como ‘salvadores da pátria’ pelas políticas populistas, quando aborda-se a questão das matérias primas secundárias, específicas para reciclagem; e 7 – transformar todo o ambiente de negócio ligado aos resíduos sólidos aberto, descomplicado e favorável à iniciativa privada, principalmente expondo ‘segurança jurídica’.

Novos negócios

Uma vez alcançados esses patamares, acredita Paulo Da Pieve, “o País conseguiria ‘destravar’ a geração de novos negócios, emprego e renda para os cidadãos a partir da completa instalação da PNRS”. Todavia, não é irrelevante pensar nas dificuldades que representa fazer valer cada um desses patamares. “Diante dos fatos atuais, das dificuldades econômicas que atravessamos e das projeções pouco otimistas que temos pela frente, imagino que só vamos ter uma agenda mais positiva sobre o tema ‘resíduos sólidos urbanos’ após as eleições de 2018, quando será possível estabelecer um cronograma em relação à PNRS”, acredita o coordenador do GT-RS. Embora “fosse importantíssimo que o tema retornasse ao noticiário diário a partir de muita pressão popular, ou das frentes parlamentares da indústria e do meio ambiente, para que não caia no esquecimento, seja da sociedade em geral, ou das instâncias políticas”, completa o executivo. “Se esse ‘mercado’ estivesse de fato aberto, 150/160 empresas associadas da ABIMAQ já estariam em condições imediatas de atender as demandas que viessem a surgir”, acrescenta Paulo Da Pieve.