Utilização de rejeitos sólidos e de subprodutos do agro proporciona energia de qualidade

Neste segundo caderno sobre energias limpas, o foco está na geração de energéticos a partir de fontes como biomassa e resíduos sólidos urbanos.

“O setor agropecuário com inovação e tecnologia vai absorver, em dez anos, 40% dos gases de efeito estufa da atmosfera, além de alimentar o mundo”, afirmou Joaquim Leite, titular do Ministério do Meio Ambiente, em 5 de outubro, em debate na reunião da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).

Ao agronegócio e a essas perspectivas animadoras, somam-se os Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), que, segundo estudo da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN), considerando um cenário que representa 58% de todo o lixo urbano gerado no Brasil (RSU), englobando as 28 regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes e os municípios com mais de 200 mil habitantes, poderão ser demandados investimentos de R$ 78,3 bilhões (CAPEX), nas 274 usinas URE (94), CDR (95) e Biogás (85), além de instalações de centrais de reciclagem não computadas nesse valor.

Nesse cenário apresentado por Yuri Schmitke, presidente Executivo da ABREN, está considerado o tratamento de 46 milhões de toneladas de RSU por ano, sendo destinado 62% para URE, 21% para CDR, 11% para biogás e 6% para reciclagem, sendo que somente 4% continuarão sendo destinados para aterros. Em resposta, também serão gerados “15 mil empregos diretos e evitadas 63 milhões de toneladas de CO2 equivalente, o que corresponde a 192 milhões de árvores plantadas por ano, área similar ao Município de São Paulo”, prevê Schmitke.

Outra ação destacada pelo presidente executivo é a fundação, pela ABIMAQ e ABREN, da Coalizão Valorização Energética de Resíduos, que tem por escopo fomentar políticas públicas para o setor. Congregando diversas outras entidades e empresas, via articulação política, intenta “criar um ambiente mais favorável e atrativo para o desenvolvimento de mais projetos de recuperação energética, coprocessamento e biodigestão no Brasil”, reforça.

Biodigestão

No Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe UFRJ), no Programa de Engenharia Química, por exemplo, os professores Luciano Basto (matemático especializado em aproveitamento energético de resíduos) e João Paulo Bassin (engenheiro químico, pesquisador em tratamento de águas residuárias domésticas e industriais e recuperação de energia a partir de resíduos sólidos orgânicos) estão desenvolvendo pesquisas de biodigestão anaeróbia, com bactérias que, na ausência de oxigênio e misturadas mecanicamente a substratos em quantidades controladas, aceleram o processo e produzem adubo e gás metano, que podem ser usados como combustível para geradores de eletricidade.

Basto lembra que “ações de mistura de substratos vêm acontecendo, no Exterior, há décadas, com foco no aproveitamento das instalações, e, no Brasil, há um sistema funcionando na Grande Curitiba”. Cita, ainda, os trituradores de pia existentes nas residências norte-americanas, que misturam os restos de comida ao esgoto sanitário, e a instalação, por uma empresa inglesa (que hoje integra a Engie), de grandes trituradores nas Estações de Tratamento de Esgoto para receber o lixo orgânico.

A diferença desses processos para o que está em desenvolvimento no COPPE – e que foi iniciado nos primeiros anos da década passada em bancada laboratorial, originando duas teses de doutorado defendidas em 2016 e 2017 e alguns artigos científicos – é a dosagem dos substratos de maneira a otimizar os coprodutos e potencializar a ação das bactérias presentes.

“A digestão anaeróbia nada mais é que um processo de decomposição de matéria orgânica por microrganismos em um meio sem a presença de oxigênio gasoso. Este método é usado há muito tempo, mesmo antes do homem descobrir que era feito por microrganismos. Nesse processo, há diversos microrganismos (bactérias e arqueas) atuando em consórcio, cada qual com sua função”, reforça Bassin, agregando aos resíduos orgânicos gerados em residência o lodo produzido nas estações de tratamento de esgoto e muitos resíduos oriundos de indústrias.

Cogeração de energia a partir do biogás dos biodigestores das estações de tratamento de efluentes ou de aterros sanitários também está entre os interesses de algumas empresas que atuam no setor de Saneamento Ambiental.

Entre elas está a Pieralisi que, como explica Estela Testa – CEO Américas – produz equipamentos em que “os gases de exaustão resultantes da cogeração alimentam os secadores térmicos, cuja alta temperatura provoca a evaporação da água presente no lodo, diminuindo em até 80% o volume total, reduzindo custos com transporte e disposição. O lodo seco e tratado com teor de sólidos secos de até 90%, dependendo do tipo e da necessidade do cliente, pode ser usado como fertilizante”. A matéria-prima, no processo, é lodo de biodigestor com 20% de sólidos suspensos totais ou não-filtráveis (SST) na entrada e, ao final, há 95% SST.

A redução dos custos de transporte – garante Testa – gera economia de até 90%, sendo que “a tecnologia também encontra aplicação em indústrias de bens de capital geradoras de efluentes, proporcionando pensamento circular, economia para a destinação e principalmente preservação do meio ambiente na reutilização”.

Agroenergia

“A monumental produção de biomassa em áreas agrícolas no cinturão tropical do globo e todos os problemas gerados anualmente pela queima intencional ou acidental de parte dessa biomassa”, somada ao “avanço tecnológico no campo da biologia e da biotecnologia, permite antecipar o surgimento de biorrefinarias capazes de aproveitar todo o potencial econômico da biomassa”, na visão de Maurício Antonio Lopes – engenheiro agrônomo pesquisador da Embrapa Agroenergia, Mestre em Genética e Doutor em Biologia Molecular de Plantas. O potencial sustentável gera rotas de conversão capazes de transformar esses insumos “numa espécie de petróleo bruto, do qual possam ser destilados produtos líquidos, como bio-óleo, para produção de químicos industriais; produtos gasosos, como o biogás, como fonte energética; e produtos sólidos, como o biocarvão, a ser aplicado aos solos”, narra Lopes.

Desse modo, as biorrefinarias poderão levar à substituição de matéria-prima não-renovável – como o petróleo – pela biomassa, em múltiplos processos industriais, ajudando a descarbonizar indústrias de energia, química e de materiais, entre outras, alimentando o desenvolvimento da Bioeconomia a partir das fazendas, de modo semelhante ao que acontece no setor sucroenergético do País, que é – para Lopes – o melhor exemplo de uso de biomassa no mundo tropical e talvez um dos principais exemplos de biorrefinaria de sucesso: “As agroindústrias de cana produzem concomitantemente alimentos (açúcar), biocombustíveis (etanol de primeira e segunda geração, biogás), bioenergia (bioeletricidade), além de matéria-prima para a produção de químicos-verdes drop-in”, que possuem a mesma composição química e propriedades dos derivados fósseis.

Todas essas funções dependem de bens de capital mecânico, seja para atender as inúmeras tecnologias em uso no dia a dia das usinas, desde a produção, colheita, transporte, até os processos fermentativos e insumos industriais utilizados na produção dos múltiplos componentes derivados da biomassa da cana, além dos componentes de engenharia e automação que permitem que as usinas e refinarias operem no limite de sua eficiência. “O desenvolvimento tecnológico, tanto agrícola quanto industrial, foi um dos principais fatores que posicionaram o setor sucroenergético em uma posição de vanguarda, permitindo ao País alcançar uma posição de destaque na agenda bioeconômica global”, confirma Lopes, que presidiu a Embrapa de outubro 2012 a outubro 2018.

Aplicação prática

Entre as empresas que geram energia elétrica a partir da biomassa para fins comerciais está a Adecoagro, presente no Brasil desde 2004, tendo iniciado a atividade em 2007 com a implantação da unidade industrial Angélica (MS). Hoje, além de produzir açúcar e etanol, também atua na cogeração de energia elétrica com três unidades industriais: Usina Monte Alegre (MG) e o cluster formado pelas usinas Angélica e Ivinhema, ambas no Mato Grosso do Sul. Juntas, elas possuem capacidade de moagem de 13,7 milhões de toneladas de cana por safra, tendo construído “um modelo de baixo custo de produção, alta flexibilidade e processos inovadores, sendo reconhecida como uma das mais competitivas do segmento sucroenergético mundial”, afirma Roberto Oliveira, diretor Industrial da Adecoagro.

O processo utilizado é o termelétrico de transformações de energias térmica, mecânica e elétrica. A partir da queima do bagaço da cana é produzido vapor (energia térmica), que alimenta turbinas a vapor transformando-a em energia mecânica, que por sua vez, produz rotação em turbogeradores que a transformam em energia elétrica, descreve Oliveira, ao informar que, “em 2009, iniciamos as pesquisas para produção de biogás a partir da vinhaça, resíduo da produção de etanol, na unidade Monte Alegre (MG). Em 2016, estes estudos foram transferidos para a unidade da Adecoagro em Ivinhema (MS), onde foram implantados biodigestores que produzem biogás através de vinhaça concentrada”.

O processo termelétrico transforma energia térmica em mecânica e elétrica, a partir da queima do bagaço de cana

A queima do bagaço, basicamente, gera metano (queimado para aquecimento térmico na produção de vapor) e dióxido de carbono (absorvido pela fotossíntese da cana-de-açúcar, que neutraliza o efeito das emissões).

Ponto importante ressaltado pelo diretor Industrial da Adecoagro, é que “a energia elétrica gerada pelo biogás e pela queima do bagaço está interligada ao Sistema Integrado Nacional de distribuição de energia elétrica, sendo transportada através de linhas de transmissão até as subestações próximas das usinas e posteriormente integrada na rede nacional de distribuição”.

Os planos estão exigindo investimentos próximos a R$ 350 milhões, com retorno previsto em menos de 3 anos. Como efeito prático, comentado por Oliveira, está ter 100% das frotas da empresa movidas por gás metano da vinhaça concentrada e ampliar os negócios com energia para “produção de hidrogênio verde a partir do biogás; utilização de torta de filtro na produção de biogás, utilização de CO2 para desenvolvimento de mudas e cana energia”.