Vias em estado inadequado e investimentos diminuindo

O Brasil é conhecido como uma nação ‘rodoviária’. Isto é, tudo que nele circula, transita, ocorre – prioritariamente – através de rodovias. A relação do estado geral das estradas brasileiras no dia a dia do usuário também é direta e inquestionável, seja pelo custo final de produtos e serviços, seja pela disponibilidade de todo tipo de gênero comprado, ou oferecido aos consumidores. Na memória do brasileiro ainda está fresca a lembrança do que ocorreu em fevereiro último na rodovia federal BR-163, entre a divisa do Estado do Mato Grosso e o município paraense de Santarém, quando aproximadamente 4 mil caminhões ficaram atolados por mais de dez dias na estrada em função das péssimas condições de tráfego.

Em pleno escoamento da safra de soja do Centro-Oeste, caminhões que se dirigiam aos portos de Miritituba e Santarém, ambos municípios do Estado do Pará, ficaram parados por dias seguidos nos trechos não pavimentados da rodovia devido ao intenso volume de chuvas, que provocou atoleiros intransponíveis. Por força desse transtorno perdeu-se muito em gêneros alimentícios, que acabaram estragando nas carrocerias dos caminhões parados, gerando prejuízos a produtores rurais regionais. Alimentos perecíveis acabaram sendo jogados fora; prazos de embarques de longo curso foram perdidos. Sem contar as necessidades básicas que homens, mulheres e crianças, retidos no lodaçal da rodovia, tiveram de suportar em decorrência da quase total ausência de auxílio. Quem, felizmente, conseguiu minimizar o sofrimento da falta de água e alimento para muitos das vítimas do ‘comboio atolado’ foi o Exército brasileiro, que acabou distribuindo cestas básicas para as pessoas mais necessitadas.

Qual o prejuízo real dessa tragédia, considerando-se as perdas materiais que atingiram veículos, cargas, empresas e horas trabalhadas? Qual a dimensão não material do desgaste causado a motoristas de caminhões rodoviários e auxiliares por conta da sofrida experiência vivida nos atoleiros da BR-163? Quais os efeitos residuais que essa tragédia localizada – semelhante a tantas outras ocorridas e por ocorrer no Brasil – deixaram na saúde emocional de motoristas que transitam pelas estradas do País? Não se conhece resposta convincente para nenhuma dessas questões. No máximo, pode-se conjecturar, a partir dos desdobramentos de tantas outras situações parecidas, que os efeitos residuais de calamidades rodoviárias patrocinadas pelo estado geral das estradas brasileiras, não são pequenos, tampouco superficiais, ou inconsequentes.

Rodovias inadequadas

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT), entidade máxima de representação do setor de transporte e logística no País, também não tem respostas para essas questões. Mas, dispõe de números e dados qualificados que podem auxiliar no dimensionamento de tantas outras ‘tragédias anunciadas’ ocorridas, ou, ainda por acontecer no Brasil. São dados que cobrem a totalidade (100%) das rodovias federais pavimentadas, além das principais estradas estaduais do País, e revelam o estado geral de tráfego dessas vias. No último dia 21 de agosto, por exemplo, a confederação retomou esforços, realinhou dados e tornou público duas importantes conclusões relacionadas à pesquisa que realiza e atualiza desde 2004, envolvendo as condições de tráfego, a segurança das rodovias pesquisadas, os investimentos programados e os empenhos realizados e programados pelo governo federal para o setor rodoviário.

De acordo com o trabalho apresentado – Pesquisa CNT de Rodovias 2016 – reportando-se a uma série histórica que cobre o período de 2004 a 2016, o estado geral das rodovias federais pavimentadas melhorou 24,0 pontos percentuais. Passou de 18,7%, com classificação ‘ótimo’, ou ‘bom’, em 2004, para 42,7%, em 2016. Apesar do desempenho relativamente positivo ao longo desse período de 13 anos, 57,3% das rodovias avaliadas pela CNT “ainda encontram-se em condição ‘inadequada’ de tráfego”. Em outras palavras, “apresentam problemas nas condições do ‘Pavimento’, ‘Sinalização’ e ‘Geometria’ da via, refletindo diretamente no aumento do custo operacional agregado ao transporte, além de comprometerem a segurança de usuários e produzir impactos negativos ao meio ambiente”, comenta Clésio Andrade, presidente da confederação.

De forma particularizada, dos trechos avaliados pela pesquisa como ‘inadequados’, o ‘Pavimento’ alcançou 48,3% de conceito entre ‘péssimo’, ‘ruim’, ou ‘regular’, enquanto 51,7% das extensões pesquisadas encaixam-se nos conceitos ‘bom’ e ‘ótimo’. Em termos de ‘Sinalização’, 51,7% das extensões avaliadas enquadram-se nos conceitos ‘péssimo’, ‘ruim’, ou ‘regular’, contra 48,3% que estão em melhor situação. Na variável ‘Geometria’ da via, os conceitos ‘péssimo’, ‘ruim’, ou ‘regular’ somaram 77,9% das extensões analisadas. Outro detalhe importante: de 2015 para 2016, houve aumento de 26,6% no número de pontos críticos (trechos com buracos grandes, quedas de barreiras, pontes caídas e erosões), passando de 327 para 414, respectivamente.

Dos 414 pontos críticos encontrados em 2016, 304 corresponderam a buracos grandes, 93 a erosões na pista, 13 quedas de barreiras e 4 pontes caídas. Na prática, acrescenta o dirigente da entidade, “a má qualidade do pavimento das rodovias (48,3%) acaba sendo responsável por um aumento médio de 24,9% do custo operacional do transporte”. Nos trechos onde o ‘Pavimento’ foi considerado ‘péssimo’ – resultante de desgastes na faixa de rolamento, trincas em malha, remendos, afundamentos, ondulações e buracos na superfície do pavimento —, o acréscimo no custo do transporte (ou operação) pode chegar a 91,5%, em alguns casos. Apesar de muito expressivo, “esse percentual pode ser ainda maior, pois, há variações na qualidade do ‘Pavimento’, tanto entre as regiões brasileiras, quanto entre as rodovias sob as várias alternativas de gestão”, acrescenta Clésio Andrade.

Entre as regiões brasileiras, a ‘Norte’ é a que tem as piores condições de ‘Pavimento” e, consequentemente, a maior média de custo operacional ao transportador (34,3%). Já o Sudeste é a região onde há menos custo adicional (21,2%). Entretanto, a maior discrepância ocorre na comparação entre os tipos de gestão – enquanto o custo adicional médio nas rodovias concedidas é de 9,6%, esse percentual chega a 28,7% nas estradas geridas pelo setor público.

Qualidade X investimento

De acordo com a pesquisa da CNT, realizada em parceria com o Sest Senat, “o estado geral das rodovias é reflexo de um histórico de baixos investimentos no setor”. Mais do que uma simples correlação, a pesquisa da entidade identificou, sim, uma relação direta entre investimento oficial em infraestrutura viária e qualidade das vias existentes. Em 2015, o investimento federal em infraestrutura de transporte em todos os modais foi de apenas 0,19% do PIB (Produto Interno Bruto). Em 2016, o valor autorizado de recursos para o transporte rodoviário (R$ 6,56 bilhões) representou 69,1% do montante autorizado em 2015 (R$ 9,37 bilhões), que já havia sido contingenciado. Em 2015, o governo federal desembolsou somente 63,5% (R$ 5,95 bilhões) dos recursos autorizados. “Os R$ 3,42 bilhões, que não foram gastos, poderiam ter financiado a manutenção de 11 mil km de rodovias”, avalia a CNT. A análise dos investimentos federais mostra que, em 2016, o valor total pago (R$ 8,61 bilhões) está acima do montante autorizado (R$ 6,56 bilhões). Isso, segundo a CNT, “deve-se ao pagamento de restos a pagar de anos anteriores, mas, realizado em 2016, o que não significa, necessariamente, que as rodovias geridas pela União receberam mais intervenções”.

Mesmo nos anos de maior volume de investimentos em rodovias, “o governo federal não desembolsou sequer 0,5% do PIB em melhorias da infraestrutura”, revela o relatório da CNT. E isso independente de quem estivesse à frente do governo central – Luís Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e, mais recentemente, Michel Temer. Desde 2004, os anos de 2010 e 2011 registraram o maior investimento federal na malha rodoviária – 0,26% e 0,25% do PIB, respectivamente. Além de serem insuficientes para solucionar todos os gargalos, os recursos vêm diminuindo ao longo dos anos, o que contribui para gerar situações como buracos na pista, sinalização precária, traçado perigoso – aumentando, assim, o risco de acidentes e os custos operacionais do transporte. “O percentual de investimentos do governo federal em rodovias em relação ao PIB do país sempre foi pífio; em 2016, chegou a 0,14%, restringindo as possibilidades de melhoria da malha”, afirma o diretor-executivo da CNT, Bruno Batista.

Sem prioridade

Ao analisar apenas os 13 anos, entre 2004 e 2016, como já foi mencionado, é possível perceber, segundo os dois representantes da confederação dos transportes, “uma relação direta entre a qualidade das rodovias brasileiras pavimentadas e os investimentos federais aplicados em infraestrutura rodoviária”. Em 2011, por exemplo, a União investiu o maior montante em infraestrutura de transporte no período, R$ 15,73 bilhões. No levantamento da CNT, o percentual de rodovias consideradas ‘ótimas’, ou ‘boas’ nesse ano foi de 41,3%. Em 2004, quando houve o menor aporte no período (R$ 3,90 bilhões) o percentual de avaliação das rodovias consideradas ‘ótimas’, ou ‘boas’ foi de apenas 18,7%.

Em 2015 e em 2016, apesar do baixo volume de investimentos (R$ 6,33 bilhões e R$ 8,61 bilhões, respectivamente), percebe-se a manutenção dos percentuais de avaliação positiva (42,1% e 42,7%). Isso ocorre, entre outros motivos, pelo investimento em melhoria da ‘sinalização’ (de menor custo) e ‘manutenção’. Em 2016, o volume de recursos aplicados pelo governo federal nas rodovias retrocedeu praticamente ao nível de 2008, em valores reais. A estratégia do poder público foi investir os escassos recursos em ações de manutenção e recuperação de rodovias, que concentraram 64,3% do montante desembolsado em 2016. Desde 2012, o governo federal reestruturou o tipo de gasto público em rodovias do País. Em 2004, o percentual investido em adequação e construção foi de 52,2% do total, enquanto o aporte em ações de recuperação e manutenção alcançou 30,7%. Em 2016, esses percentuais se inverteram: 28,1% e 64,3%.

Na avaliação da entidade, a indicação (histórica) de que mais da metade dos trechos percorridos pelos especialistas da CNT encontram-se na condição ‘inadequado’, reforça a falta de priorização de investimentos públicos em infraestrutura de transporte ao longo dos anos, apesar de a maior parte das cargas e passageiros ser transportada por esse modal. “Essa distorção nos gastos públicos tem causado graves prejuízos à sociedade brasileira, desde o desestímulo ao capital produtivo, passando pelas dificuldades de escoamento da produção até a perda de milhares de vidas”, avalia Clésio Andrade. A CNT calcula que, para adequar a malha rodoviária brasileira, com obras de duplicação, construção, restauração e solução de pontos críticos, seriam necessários investimentos da ordem de R$ 292 bilhões.

Baixa densidade

Segundo esclarece a CNT, o Brasil possui 1.720.756 km de rodovias, dos quais apenas 211.468 km são pavimentados (12,3% do total) – o estudo realizado pela CNT sobre as condições das vias brasileiras cobre a totalidade dos 103.259 km (inclusos nos 211.468 km pavimentados) relativos às rodovias federais pavimentadas, além das principais rodovias estaduais. De maneira geral, a densidade de infraestrutura rodoviária brasileiras é de 24,8 km de vias pavimentadas por 1.000 km2 de área (incluindo todas as rodovias pavimentadas do País, independente do gestor). Nos EUA, por exemplo, são 438,1 km por 1.000 km2 de área; na China, 359,9 km; Rússia, 54,3 km; Austrália, 46,0 km; Canadá, 41,6 km; e Argentina, 25,0 km, apenas para citar alguns exemplos comparativos. A reduzida densidade da malha rodoviária nacional pavimentada “é um dos fatores que influenciam a posição do Brasil no ranking de competitividade global do Fórum Econômico Mundial, no quesito qualidade da infraestrutura rodoviária”, destaca a CNT. Em 2016, numa avaliação entre 138 países participantes do Fórum, o Brasil encontrava-se na 111ª posição.
A baixa densidade da infraestrutura rodoviária brasileira chega até ser um contrassenso. Primeiro, por conta da dimensão territorial que representa a nação e da dependência categórica do transporte rodoviário, quer de carga, ou passageiros; segundo, pelo crescimento (ainda que não constante) da oferta de veículos pesados pelo parque industrial nacional e a compra de caminhões pelos cidadãos e empresas. Além de contrassenso, essa baixa densidade rodoviária expõe indiretamente outra franja do esgarçado tecido rodoviário nacional, representada pelo número de acidentes que ocorrem nas estradas brasileiras.

As imperfeições no pavimento, os problemas de sinalização e a inexistência de dispositivos de segurança em curvas perigosas dificultam a condução dos veículos. Em 2015, em rodovias federais policiadas, os 121.438 acidentes registrados geraram um custo de R$ 11,15 bilhões ao País. Apenas os acidentes com vítimas fatais geraram um custo de R$ 4 bilhões. Para chegar a esses números e valores, a CNT atualizou, com base no número de acidentes registrados em 2015 e na inflação do período, um estudo desenvolvido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), pela ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) e pelo Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), que estima os custos da perda de vidas, dos danos materiais dos veículos e da perda de cargas em acidentes de trânsito. Para minimizar as tragédias e reduzir os custos dessa natureza, a CNT sugere, de imediato, a eliminação dos 414 pontos críticos mencionados anteriormente. Isso seria possível com a implantação de defensas em 51.459 km, construção de acostamento em 43.750 km e recuperação do pavimento, considerando os pontos mapeados pela PRF como concentradores de acidentes.

Modal rodoviário

O modal rodoviário, comenta Bruno Batista, “é responsável pela maior parte do transporte de cargas do País e pela maior parte dos deslocamentos de pessoas”. Com isso, na avaliação da entidade, torna-se ainda maior a urgência para solucionar os gargalos existentes nas rodovias brasileiras. “A malha rodoviária brasileira é a infraestrutura de transporte mais disponível em todas as regiões, mas, ainda assim, não cresce há um tempo”, informa o diretor da entidade. “A demanda continuada de tráfego e os recursos escassos para manutenção e expansão levam a uma deterioração da infraestrutura instalada em velocidade elevada”, considera ele.

A diferença discrepante entre investimento público e privado nas rodovias brasileiras é outro dos pontos identificados pelo estudo da CNT. Avaliando os investimentos entre os anos de 2004 e 2016, o estudo mostra que os recursos privados, por quilômetro, representam mais do que o dobro dos públicos. Em 2013, as concessionárias brasileiras investiram R$ 447 mil por quilômetro (o maior investimento realizado no período). Em 2016, houve redução para R$ 354,46 mil e, mesmo assim, esse valor é 122,1% maior do que o recebido pelas rodovias federais geridas pela União – em 2016, o governo federal aportou somente R$ 159,60 mil por quilômetro pavimentado.

“Esse é um bom parâmetro de comparação – o investimento realizado pelas concessionárias faz com que o nível de qualidade da rodovia seja significativamente superior ao das estradas mantidas pelo poder público”, afirma Bruno Batista. Na última pesquisa realizada pela CNT sobre as condições de tráfego e uso das rodovias pavimentadas brasileiras, a extensão ‘concessionada’ com estado geral classificados como ‘ótimo’, ou ‘bom’, foi de 78,7%. Nas federais sob gestão pública, foi de apenas 42,7%.

Desde a década de 1990 o País adota a alternativa de participação da iniciativa privada no provimento da infraestrutura de transporte, via concessões. De 2004 a 2016, foram investidos R$ 49,96 bilhões pelas concessionárias. Só em 2016, o investimento privado foi de R$ 6,75 bilhões em 19.031 km. Nesse mesmo ano, as rodovias públicas federais receberam R$ 8,61 bilhões para investir em mais que o dobro da extensão, 53.943 km. Uma análise evolutiva mostra que o volume anual de aportes acompanhou a expansão do programa de concessões rodoviárias. Apesar disso, o valor investido (por km de rodovia concedida), que apresentou incrementos consecutivos entre 2004 e 2013, registrou retração entre 2014 e 2016. Segundo o estudo, esse resultado deve-se, além da crise econômica, às dificuldades enfrentadas pelas novas concessionárias. Entre essas dificuldades, a CNT destaca o financiamento das obras devido às mudanças na política econômica governamental (principalmente do BNDES).