Entrevista: Hidrogênio no foco da EPE como meio para descarbonização

Giovani Vitória Machado e Rachel Henriques Diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais e Consultora Técnica da Superintendência de Derivados de Petróleo e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE)

“Há um conjunto de ações governamentais para desenvolver a economia do hidrogênio no Brasil, em particular o hidrogênio de origem renovável ou com baixo teor de emissões de carbono”, informam Giovani Vitória Machado – diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais – e Rachel Henriques – consultora técnica da Superintendência de Derivados de Petróleo e Biocombustíveis –, ambos da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
As ações no campo do hidrogênio por parte dessa empresa pública federal – prestadora de serviços ao Ministério de Minas e Energia (MME) – e a relevância do hidrogênio no cenário energético nacional, assim como os desafios tecnológicos e a contribuição da indústria de bens de capital mecânico, em especial da de máquinas e equipamentos, e os benefícios advindos das ações estão citados ao longo desta entrevista exclusiva para a revista Máquinas & Equipamentos.
Confira e boa leitura!

Máquinas & Equipamentos – De que forma a produção de hidrogênio pode contribuir para a minimização dos efeitos da crise hídrica?
EPE – O Brasil tem passado por uma sequência de anos com poucas chuvas para os padrões históricos. Em 2021, houve agravamento da situação, com o menor nível de chuvas em 91 anos, resultando na atual escassez hídrica. Há uma série de ações tomadas pelo governo e pelos agentes do setor elétrico e demais setores usuários de recursos hídricos para lidar com a escassez.
No curto prazo, as unidades de produção do hidrogênio já estão comprometidas com o atendimento de demanda não-energéticas (fertilizantes, em refinarias, metalurgia, química, alimentos etc.) e não há, tampouco, tempo hábil para novos projetos com foco em geração elétrica e/ou armazenamento de energia.
No médio e longos prazos, o hidrogênio poderá sim contribuir para a ampliação da segurança e da confiabilidade do sistema elétrico e em eventuais situações de escassez hídrica, visto que pode ter um uso importante no armazenamento de energia para lidar tanto com a variabilidade e sazonalidade de fontes renováveis. Obviamente, a depender da rota tecnológica utilizada, os desafios e as oportunidades para o hidrogênio serão distintos em uma situação de menor disponibilidade hídrica. A rota tecnológica do hidrogênio por eletrólise da água do mar dessalinizada terá mais oportunidades em um contexto de escassez hídrica do que a eletrólise de água doce, por exemplo.

As duas últimas edições do Plano Nacional de Energia – 2030, publi­cada em 2007, e 2050, em 2020 – abordam o potencial do hidrogênio para o setor energético, assim como os desafios dele decorrentes. Ao longo de 2020 e 2021, a EPE aprofundou seus estudos nesse campo para embasar o supor­te à tomada de decisão do MME e, em 2021, vem apoiando esse ministério na elaboração e no enca­minhamento de propostas ao CNPE, que elaborou duas Resoluções visando ao Programa Nacional do Hidrogênio.

M&E – Que ações, nesse campo do hidrogênio, a EPE vem desenvolvendo?
EPE – A EPE tem estudado e pesquisado sobre o hidrogênio há algum tempo. O Plano Nacional de Energia 2030, publicado em 2007, já abordava o potencial do hidrogênio para o setor energético, mas havia ainda desafios significativos.
No âmbito do Acordo de Cooperação Técnica com Alemanha, em 2017, a EPE passou a colaborar com a GIZ (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit) em um projeto sobre Combustíveis Alternativos para Aviação, denominado Projeto ProQR – Combustíveis Alternativos sem Impactos Climáticos. Uma das rotas tecnológicas era produzir um combustível sintético de aviação a partir do hidrogênio (obtido por eletrólise da água) e de CO2, (obtido por CCUS de plantas industriais ou da biomassa, sigla para Carbon Capture Utilisation and Storage , que em português significa captura, utilização e armazenamento de carbono). O Projeto tem avançado de fases e gerou um conhecimento importante para a EPE.
O Plano Nacional de Energia 2050, publicado em 2020, lista o hidrogênio como uma tecnologia disruptiva, identificando desafios e traçando recomendações como desenhar aprimoramentos regulatórios relacionados à qualidade, segurança, infraestrutura de transporte, armazenamento e abastecimento, bem como articular com outras instituições internacionais que tenham iniciativas na área de hidrogênio.
Posteriormente, ao longo de 2020 e 2021, a EPE aprofundou seus estudos sobre hidrogênio para embasar o suporte à tomada de decisão do MME e seu posicionamento em uma série de interações internacionais, inclusive no âmbito da Parceria Energética Brasil-Alemanha, Clean Energy Ministerial (CEM), Mission Innovation (MI), BRICS, IRENA, IEA e ONU. Naquele período, elaborou a Nota Técnica “Bases para a Consolidação da Estratégia Brasileira do Hidrogênio”, que foi publicada em fevereiro de 2021, consolidando sua visão e conhecimento.
Destaque-se, ao longo de 2021, o apoio ao MME na elaboração e encaminhamento de propostas envolvendo o hidrogênio ao Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, as quais resultaram em duas Resoluções do CNPE: nº 2, 10/02/2021, que orientou ANEEL e ANP a, no âmbito de suas competências, priorizarem a destinação de recursos de pesquisa, desenvolvimento e inovação a um conjunto de temas específicos, entre os quais o hidrogênio; e nº 6, 20/04/2021, que determinou ao MME, em cooperação com os Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e Desenvolvimento Regional (MDR), com o apoio técnico da EPE, apresente a este Conselho proposta de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio.
Em atendimento à Resolução nº 6/2021 do CNPE, a EPE deu apoio técnico ao MME no desenvolvimento da proposta de diretrizes para o Programa Nacional do Hidrogênio e na elaboração de seu Relatório e apresentação.
No contexto do Diálogo em Alto Nível em Energia das Nações Unidas, a EPE também deu suporte ao MME na elaboração do pacto energético (energy compact) governamental com compromissos voluntários em hidrogênio, como contribuição nacional para acelerar o cumprimento das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 7 (ODS 7), que prevê acesso universal a energias limpas. O Pacto Energético em Hidrogênio foi apresentado, em junho de 2021, no Fórum Ministerial do Diálogo em Alto Nível das Nações Unidas sobre Energia.
Por fim, a EPE tem interagido, em reuniões e eventos, com uma série de agentes e instituições (inclusive tivemos em reunião com a ABIMAQ) para reduzir as assimetrias de informação sobre hidrogênio e seu potencial do Brasil.

M&E – Entre as formas de produção de hidrogênio, quais vêm sendo apontadas como mais eficientes em termos de custo e de impacto ambiental?
EPE – O hidrogênio pode ser obtido a partir de diversas matérias-primas, através de variadas rotas tecnológicas e, também, de ocorrências naturais (hidrogênio geológico está em produção no Mali e há exploração em outros locais, inclusive pesquisas no Brasil).
Há a reforma a vapor do metano, cuja rota que utiliza gás natural ainda é a principal (70%) e mais competitiva do mundo, mas tem emissões de gases de efeito estufa associada. Essa rota do gás natural pode ser utilizada conjuntamente com tecnologias CCUS, reduzindo em 90% as emissões de carbono associadas. Há a rota da pirólise do gás natural, que pode não ter emissões de carbono, se a eletricidade utilizada no processo for renovável (ou nuclear), pois o carbono resultante é sólido e pode ser usado para produção de fertilizante e pneus. A gaseificação do carvão mineral, que também tem uma pegada de carbono significativa, quando utilizada em conjunto com CCUS. A eletrólise da água é considerada bastante promissora e com grande potencial de redução de custos e sem emissões de carbono, quando associada ao uso de eletricidade renovável. A eletrólise da água com base em eólica e solar tem gerado expectativas no mundo e no Brasil, estimando-se que será dominante no futuro por sua baixa pegada de carbono e uma expectativa de queda de custos significativa até 2050 (60%). A eletrólise da água também pode ser realizada com energia nuclear, havendo conceitos de projetos de pequenos reatores modulares (SMR) que, além de gerar eletricidade, poderiam gerar hidrogênio por eletrólise da água quando demanda elétrica estiver baixa.
Outro processo que pode envolver a energia nuclear é a rota termoquímica. No caso do Brasil, ainda em fase de P&D, a reforma a vapor do etanol tem também recebido bastante atenção de grandes empresas como a Nissan, a Toyota, a Volkswagen e a Bosch. O potencial de redução de custos, a infraestrutura de produção e abastecimento, a capacitação tecnológica e de recursos humanos na cadeia produtiva, o mercado potencial e a performance ambiental justificam esse interesse.
Há outras rotas envolvendo a gaseificação de biomassa, a pirólise do biogás, a biodegração de resíduos e o craqueamento por micro-ondas de resíduos plásticos, que também poderão ter um papel importante no futuro.

O setor de máquinas e equipa­mentos pode se beneficiar com a ener­gia do hidrogênio tanto para se descarbonizar, quanto para participar da cadeia global de valor.
Um exemplo é a empilhadeira a célula combustível.

M&E – Quais os desafios tecnológicos e de mercado para a implantação do hidrogênio como fonte de energia?
EPE – Há diferentes desafios para o hidrogênio. Nos aspectos tecnológicos, o principal desafio é fazer a mudança de escala com redução de custos. Isto porque estamos acostumados a pensar que basta aumentar a escala que o preço cai, mas esse processo não é linear. Por vezes, o aumento de escala traz desafios tecnológicos de processos industriais e de materiais, por exemplo, que não estavam presentes em escalas menores (por isso, que muitas inovações falham em passar do piloto e demonstração para a escala industrial). Já existe um mercado estabelecido de hidrogênio, então, os desafios tecnológicos de armazenamento e transporte são conhecidos e estão equacionados para a escala e processos atuais. Assim, é difícil dissociar o desafio tecnológico do desafio econômico, pois é preciso aumentar a escala e, para isso, é preciso ampliar a competitividade. Para disseminar a tecnologia, também será preciso investir em capacitação tecnológica e na formação de recursos humanos para toda a cadeia de fornecedores.
Assim, os desafios de mercado estão muito relacionados à competitividade e ao modelo de negócios para a disseminação da produção e do uso do hidrogênio de baixo ou zero carbono. Não haverá um modelo único de negócios. As empresas devem focar em desenvolver expertises e modelos de negócios para os nichos de mercado que pretendem atuar. É preciso desenvolver modelos de negócios adequados ao momento de mercado também. Hoje, pelo custo de uma infraestrutura dedicada ao hidrogênio, os modelos de negócios tendem a ser descentralizados, produzindo o hidrogênio e consumindo-o em processos industriais no próprio sítio a fim de reduzir seu custo de infraestrutura logística. Chegará a hora de uma infraestrutura ampla de hidrogênio, mas isso ainda parece distante.
Há necessidade de dar transparência e clareza acerca dos processos, leis, regulamentos e normas do mercado de hidrogênio. Quem já opera nesse mercado sabe o que precisa ser feito, mas novos entrantes e potenciais investidores, não. Então, um dos primeiros passos do governo é dar transparências aos processos, leis, regulamentos e normas existentes no mercado. Na sequência, é preciso aperfeiçoar o arcabouço institucional, legal e regulatório, pois o mercado mudará de escala, recepcionará novas tecnologias de produção, transporte e uso de hidrogênio. O teor de carbono será um diferencial de preços no futuro, então, será preciso ter normas, certificações e sistemas de medida, divulgação e verificação, que permita o mercado formar preços por diferenciais de qualidade, como em outros mercados de combustíveis globais.
Em suma, é importante também remover as barreiras ao desenvolvimento do mercado, assim como aperfeiçoar o arcabouço institucional, legal e regulatório, formar recursos humanos e desenvolver capacitações e competências para que o mercado floresça. No entanto, como temos dito, esses desafios não precisam ser todos superados ao mesmo tempo e tampouco todas as oportunidades estarão colocadas no mercado desde o início. A própria competitividade fará um filtro.

M&E – Como o setor de bens de capital mecânico pode contribuir para a concretização desses projetos?
EPE – O setor de bens de capital mecânico pode contribuir muito no desenvolvimento de infraestrutura e equipamentos pesados para a cadeia produtiva. Um foco importante em estruturas, dutos, tubos e vasos com materiais e espessuras compatíveis com pressões requeridas pelo hidrogênio, mas também em estruturas e equipamentos voltados para renováveis, para CCUS e infraestrutura em geral (inclusive portuária). Devem priorizar também a estruturação de modelos de negócios competitivos e escaláveis, bem como desenvolver capacitações e competências corporativas em tecnologias-chave e capital humano aplicadas aos segmentos de mercado que atuam ou pretendem atuar. Sobretudo, devem buscar a consolidação de redes de fornecedores e clientes da cadeia de valor do hidrogênio para buscar condições sistêmicas de competitividade.

M&E – Como o setor de máquinas e equipamentos pode se beneficiar com a energia produzida por hidrogênio?
EPE – O setor de máquinas e equipamentos pode se beneficiar com a energia do hidrogênio para se descarbonizar e participar da cadeia global de valor. Máquinas e equipamentos de transporte para diversos setores também precisarão se descarbonizar. Um exemplo de entrada do hidrogênio na indústria é o de empilhadeira a célula combustível, trazendo potência, descarbonização e melhor ambiência local.


A EPE

Criada por meio de medida provisória convertida em lei pelo Congresso Nacional – Lei 10.847, de 15 de março de 2004 e efetivada pelo Decreto 5.184, de 16 de agosto de 2004, a EPE, consolidou-se como parte fundamental de um ciclo de atividades que se inicia com as definições de políticas e diretrizes no âmbito do CNPE – Conselho Nacional de Política Energética e do MME. A partir dessas definições materializam-se os estudos e as pesquisas que irão efetivamente orientar o desenvolvimento do setor energético brasileiro.

Desde sua constituição, a EPE presta serviços ao Ministério de Minas e Energia (MME) na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético, cobrindo energia elétrica, petróleo e gás natural e seus derivados e biocombustíveis.

Devido a seus objetivos, tem participado ativamente das grandes discussões que dizem respeito ao setor energético brasileiro, atuando no planejamento do setor energético nacional e conduzindo os estudos e pesquisas que culminam na construção do conjunto de procedimentos e ações que visam à realização da política necessária ao suprimento de energia.

Em suas ações, a EPE interage com o MME; com agências reguladoras como Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANP) e Agência Nacional de Águas (ANA); com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

O Escritório Central da EPE funciona na cidade do Rio de Janeiro (RJ) e a sede da instituição fica em Brasília (DF). Para realizar suas ações, conta com quatro diretorias e dez superintendências em sua estrutura.